Este livro é uma compilação de cinco ensaios sobre a ideia de habitar do arquiteto e crítico finlandês Juhani Pallasmaa. Desde a abordagem fenomenológica que aparece no primeiro e mais longo artigo, “Identidade, intimidade e domicílio” (1994), até o significado da experiência do tempo na realidade empírica humana de “Habitar no tempo” (2015), o conjunto não somente trata das dimensões materiais, formais, geométricas e racionais da ideia de habitar como também investiga de maneira apaixonante as realidades mentais, subconscientes, míticas e poéticas da construção e da moradia.
Prólogo
HABITAR NO ESPAÇO E NO TEMPO
“Para mim, qualquer tipo de arquitetura, independentemente de sua função, é uma casa. Eu projeto apenas casas, não arquitetura. Casas são simples. Elas sempre mantêm uma relação interessante com a verdadeira existência, com a vida”, confessa o arquiteto Wang Shu, ganhador do prêmio Pritzker em 2012. De modo geral, concordo com meu colega chinês. A casa é um cenário concreto, íntimo e único da vida de cada um, enquanto uma noção mais ampla de arquitetura implica necessariamente generalização, distanciamento e abstração. O ato de habitar revela as origens ontológicas da arquitetura, lida com as dimensões primordiais de habitar o espaço e o tempo, ao mesmo tempo em que transforma um espaço sem significado em um espaço especial, um lugar e, eventualmente, o domicílio de uma pessoa. O ato de habitar é o modo básico de alguém se relacionar com o mundo. É fundamentalmente um intercâmbio e uma extensão; por um lado, o habitante se acomoda no espaço e o espaço se acomoda na consciência do habitante, por outro, esse lugar se converte em uma exteriorização e uma extensão de seu ser, tanto do ponto de vista físico quanto mental.
Habitar é, ao mesmo tempo, um evento e uma qualidade mental e experimental e um cenário funcional, material e técnico. A noção de lar se extende muito além de sua essência e seus limites físicos. Além dos aspectos práticos de residir, o ato de habitar é também um ato simbólico que, imperceptivelmente, organiza todo o mundo do habitante. Não apenas nossos corpos e necessidades físicas, mas também nossas mentes, memórias, sonhos e desejos devem ser acomodados e habitados. Habitar é parte de nosso próprio ser, de nossa identidade.
Apesar disso, para mim, a arquitetura possui duas origens distintas: além do ato de habitar, a arquitetura deriva do ato de celebrar. O primeiro constitui um modo de definir o domicílio de alguém no mundo, o segundo é a celebração, a reverência e a elevação de atividades sociais, ideias e crenças distintas. Essa segunda origem da arquitetura dá lugar às instituições religiosas, culturais, sociais e mitológicas. Como afirma Ludwig Wittgenstein: “A arquitetura glorifica e eterniza alguma coisa. Quando não há nada a glorificar, não há arquitetura”.
Podemos também pensar que a casa celebra o ato de habitar ao conectar-se de modo intencional com as realidades do mundo. Os inúmeros e diferenciados propósitos e funções das edificações contemporâneas são funcionalidades avançadas dos atos originais de habitar, tanto a moradia quanto a celebração. Nesse processo contínuo de especialização, a arquitetura está se distanciando cada vez mais dos conteúdos míticos originais da edificação e se tornando cada vez mais desprovida de qualquer significado mental mais profundo; resta apenas o desejo de estetização. No mundo obscenamente materialista de hoje, a essência poética da arquitetura está sendo ameaçada simultaneamente por dois processos: a funcionalização e a estetização.
O ato de habitar é geralmente compreendido em relação ao espaço, como uma maneira de domesticar ou controlar o espaço, mas devemos igualmente domesticar e controlar o tempo, reduzindo a escala da eternidade para torná-lo compreensível. Somos incapazes de viver no caos espacial, mas também não conseguimos viver fora do tempo e da duração. Ambas as dimensões necessitam ser articuladas e dotadas de significados específicos. O tempo também deve ser reduzido para a escala humana e concretizado como uma duração contínua. As cidades e edificações antigas são confortáveis e estimulantes, pois nos situam no contínuo temporal. São museus benevolentes do tempo, que registram, armazenam e mostram traços temporais diferentes de nossa atual noção de tempo, nervosa, apressada e plana. Elas projetam um tempo “lento”, “consistente” e “tátil”. A modernidade se comprometeu prioritariamente com o espaço e a forma, enquanto o tempo, uma qualidade essencial de nossa existência, foi negligenciado.
Parece-me que os escritores, cineastas e artistas vislumbram a essência humana e o significado de habitar de modos mais profundos e sutis do que os arquitetos. Para nós arquitetos, o lar é simplesmente uma residência estetizada e funcional, mas negligenciamos os significados existenciais pré-conscientes do ato de morar. Como sugere Martin Heidegger, perdemos nossa capacidade de habitar.
Em meus numerosos ensaios, escritos ao longo dos últimos 25 anos, frequentemente lidei com questões relativas ao habitar, devido a seu papel fundamental na constituição da arquitetura. Dos cinco ensaios escolhidos para este livro, “Identidade, intimidade e domicílio” (1994) é meu primeiro estudo mais amplo de base fenomenológica sobre o tema, enquanto “Habitar no tempo” (2015) é um dos meus estudos mais recentes a respeito do significado da experiência do tempo na realidade existencial do ser humano. De modo geral, a ênfase de meus estudos filosóficos da arquitetura partiu de dimensões materiais, formais, geométricas e racionais rumo às realidades mentais, subconscientes, míticas e poéticas do construir e do habitar.
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